O que aprendi com um produtor de festivais de música realmente underground
Carlos Matos, da Fade In. Foto por Marcelo Brites. Cortesia Monitor

FYI.

This story is over 5 years old.

Música

O que aprendi com um produtor de festivais de música realmente underground

Góticos, crooners e cyberpunks. Pós-punk e coldwave com shoegaze. Minimal-wave, synthwave e synthpop. Synthpop Vs. Italo Disco. O som da frente e as vanguardas.

A Fade In, é uma associação cultural que produz e promove concertos desde o início deste século e que, actualmente, tem entre mãos dois eventos principais: o Festival Monitor e o Entremuralhas, no castelo de Leiria, cidade onde está sediado este conjunto de militantes musicais. Podem encontrar-se movimentos nos sítios mais inesperados, mas as propostas sonoras desta pandilha são sempre arrojadas. A VICE Portugal quis saber mais sobre este Monitor, uma espécie de luz vertida sobre o lado mais obscuro da música, que acontece já este fim-de-semana.

Publicidade

A sério que a ideia inicial era só sacar umas informações sobre o Festival, mas ao pedir um pequeno enquadramento, a conversa acabou numa viagem histórica sobre música. O ponto de partida da conversa foram os diversos géneros e subgéneros que se vão fazendo na música electrónica underground.

"Pela sua especificidade, há necessidade de criar intervalos, meter em gavetas, arrumar melhor de modo a que seja mais fácil encontrar", diz Carlos Matos, da Fade In, que partilhou connosco a sua visão pessoal de todo um movimento.

Pós-punk (e coldwave com shoegaze)

"O pós-punk surge, tal como o nome indica, depois do punk. Há uma série de bandas que deixa de fazer aquela sonoridade mais in your face, de três acordes e de contestação, e adoptam uma ideologia mais romântica, sorumbática, menos política, mais misteriosa, a falar de simbologias. Bandas como os Joy Division podem hoje chamar-se de pós-punk, mas não naquela altura, pois foram contemporâneos do movimento punk. O que se passou é que, anos mais tarde, houve a necessidade de olhar para trás e arranjar uma etiqueta para identificar que género de som era aquele", enquadra o porta-voz da associação cultural .

E acrescenta: "Hoje, o pós-punk é feito com instrumentos orgânicos, caixa de ritmos ou bateria, normalmente com um baixo muito marcado, guitarra e voz, normalmente são três ou quatro elementos e a sonoridade resulta desses instrumentos. As influências são, de facto, das bandas que surgiram originalmente a seguir ao punk, como Killing Joke, The Cure dos primeiros anos, entre outros".

Publicidade

"No fundo este pós-punk de agora é, por si, também um outro revivalismo que surgiu com bandas como os Editors, Interpol, She Wants Revenge - projectos mais populares e que atingiram o mainstream - mas o underground continua vivo com muitas bandas, algumas delas muito inventivas, que não se limitam a perpetuar o "mofo", mas que introduzem novos elementos. São esses grupos com que a Fade In, através do Monitor, quer trabalhar", explica Carlos Matos.

"Nesta edição temos duas bandas claramente pós-punk, mas dentro desse mesmo género, com dois estilos diferentes: os The Agnes Circle, com uma sonoridade mais nostálgica, guitarras dedilhadas, com delay, quase shoegaze que vai buscar influências aos Clan of Xymox, ou Cocteau Twins, no tempo em que estas duas bandas estavam na 4AD, uma editora muito importante em meados e finais dos anos 80 e também um bocado do género coldwave, de uma editora que havia em França, que era uma espécie de resposta à 4AD, a Lively Art, com bandas como os Asylum Party ou os Little Nemo", conta.

E o produtor conclui: "Depois há um pós-punk mais vivaço, que é representado pelos Rendez-Vous, que são neste momento um fenómeno em França, têm feito primeiras partes dos M83 e dos Soft Moon, têm tocado com os Frustration e são uma banda que utiliza influências dos The Cure (mas mais nervosos) com caixa de ritmos".

O som da frente e as vanguardas

"Aqui há uns anos, o radialista António Sérgio, por exemplo, não utilizava o termo pós-punk, mas sim 'som da frente'. Na altura servia para tudo o que era novo, o que ainda não estava etiquetado nem massificado. Curioso como na altura se confundia o 'som da frente' com 'música de vanguarda'. O paradoxo é que, hoje, o termo 'vanguarda', dentro de um determinada circuito underground, já não identifica o que é novo, mas sim o que é o saudosismo do que era vanguarda nos anos 1980. Essa mesma vanguarda dessa altura, hoje pertence ao passado, naturalmente. A palavra 'vanguarda', embora signifique 'à frente', é utilizada por alguns como uma coisa do passado, é um anacronismo interessante", reflecte Matos.

E acrescenta: "O António Sérgio foi muito feliz quando criou esse epíteto de etiquetar a música daquele 'hoje' como 'som da frente', uma música que, provavelmente, seria ouvida no 'amanhã' daquela altura. E, na verdade, com todos os anacronismos que daqui advêm, o festival Monitor é uma espécie de radar daquilo que a Fade In considera que são as bandas que merecem ser ouvidas neste momento. Se antigamente se ouviam ecos da bandas que faziam digressões europeias mas cá não chegava nada, ou só chegava muito tarde, hoje, com a Internet, é mais fácil. Andamos a monitorizá-las".

Publicidade

Minimal-wave, synthwave e synthpop

"Por outro lado, há a vertente minimal-wave, que evoluiu como uma espécie de irmão gémeo falso do pós-punk. Ou seja, enquanto as bandas tradicionais do pós-punk mantiveram o formato clássico de guitarra, baixo e bateria, a minimal-wave foi buscar os instrumentos electrónicos, nomeadamente os sintetizadores. À cabeça, surgiu com bandas como os Human League, ou os The Normal", realça Carlos Matos.

E é minimalista, porque é feito com o mínimo, com poucos elementos e com poucos instrumentos. "Os Soft Cell eram um duo, os Nitzer Ebb também ou os DAF, por exemplo. A onda minimalista estendeu um braço estético chamado synthwave, que depois deu origem ao synthpop, que é música electrónica, alguma de cariz pop e de cariz dançável, onde o instrumento preponderante é o sintetizador", explica.

Synthpop Vs. Italo Disco?

Foi nesta altura - e sem vergonha de o dizer - que este escriba quis saber a opinião das semelhanças entre dois géneros, aparentemente distintos: o synthpop e aquelas xaropadas dos anos 80 do italo disco. Aquilo são como dois irmãos, mas que escolheram companhias diferentes, certo?

"Absolutamente, há uma ligação clara", concorda Carlos Matos. E justifica: "Mas repara que há esta coisa gira que o tempo nos permite ter: algumas ondas que na altura eram apelidadas de 'xaropadas', e que nós nos recusávamos a ouvir e rejeitávamos, como o synthpop mais comercial que era considerado muito foleiro, agora à distância olha-se para trás e percebe-se que, afinal, nem era assim tão mau e até deixou escola".

Publicidade

Góticos, crooners e cyberpunks

"O que se passa com os artistas que tocam no festival Monitor, é que não fazem aquele synthpop soalheiro, fazem sim algo mais sorumbático, em que as melodias são mais nostálgicas, negras ou mesmo góticas. Será essa a principal diferença entre o synthpop mais comercial e o mais alternativo. Usando uma metáfora, uns usam cores mais garridas e outros tons mais monocromáticos".

"Portanto, o Monitor abraça todos esses géneros, com os dois guarda-chuvas à cabeça - o pós-punk e o minimal wave - sobre os quais derivam outros sub-géneros. E também é isso que nos interessa explorar e introduzir às pessoas que vão ao Festival, ou seja, proporcionar aos amantes de música e a todos aqueles que andam sempre à procura de novas sonoridades, a oportunidade de descobrir ainda mais e que seja uma experiência in loco interessante", revela Carlos Matos.

"Mas um dos nomes em que tenho mais expectativas é o Sydney Valette. E aqui até há uma certa dificuldade em enquadrá-lo numa categoria. Certamente não será pós-punk, mas também não é minimal-wave. É uma espécie de crooner do século XXI, com uma dualidade curiosa: ora tem canções românticas, à la chanson française, mas com uma roupagem electrónica, como tem um braço quase cyberpunk, a lembrar Suicide, ou mesmo Sigue Sigue Sputnik, onde esperneia e vocifera palavras de ordem, bem ao estilo da música punk", explica ainda o produtor.

Publicidade

Portugal e a cena underground

"Existem algumas bandas em Portugal que podiam estar a tocar no Monitor, como os She Pleasures Herself, os IAMTHESHADOW, ou ainda os Wildnorthe. Neste momento não estão, mas podem vir a estar no futuro, aqui ou no outro festival que organizamos no castelo de Leiria, o Entremuralhas, até porque nesse também há um palco reservado a este género de sonoridades", sublinha Matos.

E adianta: "Portugal está a reagir lentamente a estes movimentos, não vale a pena estar aqui a pintar um cenário colorido, quando não o é. Este é, assumidamente, um nicho. Temos pessoas que se deslocam de vários pontos do país e do estrangeiro para o Monitor, mas é virado para uma minoria. É, no entanto, um público muito fiel e dedicado, que vem com dinheiro para comprar não só o bilhete, mas para adquirir os discos das bandas e todo o merchandising que possam. O músico mais conhecido será Qual, que tem outra banda que já tocou no Entremuralhas, os Lebanon Hanover, mas geralmente são bandas emergentes e o público faz o trabalho de casa".

"Quando anunciámos o cartaz do Monitor, houve de facto uma ou outra reacção - que é legítima, obviamente - onde se apontava a falta de bandas portuguesas, ao qual nós só podemos dizer que estamos em Maio e já fizemos este ano 18 bandas portuguesas" [Festival Clap Your Hands And Say F3st! ,em parceria com a Omnichord Records e a Rastilho Records].

"Reparem que não fazemos só o Monitor e o Entremuralhas, embora sejam estes dois eventos que tenham a maior exposição mediática, fazemos outras coisas onde celebramos a música portuguesa e nunca fechamos a porta a projectos nacionais. No Entremuralhas, por acaso, no ano passado não foi lá nenhuma banda portuguesa, mas já por lá passaram os Phantom Vision, osUni Form, a Jigsaw, Ermo, e este ano vão passar por lá os Pop Dell'Arte, é tudo uma questão de critério e selecção", explica.

"No Festival Monitor - esta é segunda edição - ainda não tivemos nenhuma banda portuguesa, é verdade. Não porque não queremos, mas sim porque como temos seis ou sete projectos por edição, a selecção do cartaz ainda não ditou essa geografia. Portugal faz parte da Europa e, da mesma maneira que há bandas portuguesas a tocar em países europeus, também há bandas europeias a tocar cá. Com a maior facilidade de viajar, isto está tudo muito mais pequeno e cada vez faz menos sentido limitar geograficamente as coisas. Em suma, estas bandas que estão no cartaz, se fossem todas de Portugal, estariam na mesma, porque elas estão lá, porque gostamos delas e não porque são oriundas deste ou daquela país. São as bandas que nós queremos ver neste momento. O mais importante é o valor da música desses projectos", conclui Carlos Matos.