Os terríveis sons da morte nos games
Imagens de 'Call of Duty': Activision/Divulgação

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Os terríveis sons da morte nos games

Trailer do novo 'Call of Duty: WWII' usa barulhos sombrios para retratar um clima de morte – mas esse não é o único jogo a fazer isso.

Esta matéria foi originalmente publicada no Waypoint.

Sou um grande fã da franquia Call of Duty. Desde aquela primeira batalha nos campos da Segunda Guerra Mundial, até os recentes tiroteios no espaço, sempre entrei na piração do jogo. Quando o trailer pro novo jogo, simplesmente chamado de Call of Duty: WWII, apareceu, eu fui assistir imediatamente. Acompanhei os soldados do clipe entre uma explosão e outra. Vi que o clima ficou tempo. A câmera pegou em detalhes a cabeça de alguém sendo esmagada. E tudo isso regada à trilha clássica de Henryk Górecki e ao som de pessoas morrendo.

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Duas coisas estranhas acontecem ao mesmo tempo na trilha desse trailer. A primeira delas é que a música usada no vídeo é o segundo movimento da Terceira Sinfonia de Górecki, também conhecida como "Sinfonia das Músicas Tristes" (valeu pelo toque, Dan Golding). Escrita depois que Górecki não produzia mais músicas em resposta ao Holocausto e o horror de Auschwitz em específico, a Terceira Sinfonia tem como tema o relacionamento entre uma mãe e uma criança, entre uma figura que permanece e uma figura que se perdeu.

Apesar de o compositor ter se distanciado das leituras feitas pela sinfônica que acabou resumindo a obra aos horrores da Segunda Guerra Mundial, é difícil de não notar a dissonância entre um videogame sobre soldados norte-americanos arregaçando em terras européias, e uma sinfonia tão triste que foi escrita depois que alguém não conseguia mais se expressar musicalmente por conta de um dos períodos mais sombrios da humanidade.

A segunda coisa estranha vem das outras camadas sonoras: os gritos de morte dos soldados. Assiste ao trailer de novo. Aumente o volume. Preste atenção aos 0:53, 1:09 e o som brutal de alguém morrendo aos 1:25. Existe uma camada de vozes lindas e um som crescente, e acima de tudo isso, um leve rugido da morte. Em alguns momentos, o trailer se mistura com os barulhos das máquinas. Em outros, o som é costurado com o barulho dos prédios sendo destruídos seguindo os pontos principais da narrativa.

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Imagens de 'Call of Duty': Activision/Divulgação

O que me impressiona com a escolha musical e a trilha de morte é que tanto o trailer como o próprio jogo baseado na Segunda Guerra são ambos construídos em cima de uma interpretação sônica da tragédia humana. As pessoas que tomaram as decisões criativas para um trailer como esse, feito para vender milhões de cópias de um game para milhões de jogadores empolgados imaginaram que a melhor maneira de fazer isso era seduzir os espectadores através dos sons da morte tanto quanto o visual dilacerante em volta deles. É brutal assistir a uma pessoa ter a cabeça esmagada. Ouvi-lo berrando de dor é um multiplicador estético. É uma questão de intensidade.

Esse truque não é exclusivo do gênero de guerra. Medal of Honor: Frontline, um dos meus jogos favoritos sobre a Segunda Guerra, tem como introdução do jogo a grande batalha na praia na Normandia, com gritos dos mortos e dos prestes-a-morrer inspirados em cenas conhecidas de O Resgate do Soldado Ryan, um filme que tem uma das cenas mais horríveis de morte da história do cinema.

Essas experiência midiáticas são acompanhadas por uma trilha feita dos horrores da morte para intensificar a tensão e a realidade dessas situações. No caso do jogo, a trilha indica que existe o caos ao redor do jogador, apesar do game não conseguir processar milhares de personagens morrendo a sua volta. No caso do filme, seguidas vezes é mostrado que existe um elemento humano real na guerra. As pessoas morrem, e às vezes morrem em conjunto, e às vezes morrem sozinhas. Humanos falham diante de uma máquina de guerra que usa seus corpos como combustível, e os sons desse processo são profundamente sombrios.

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Tanto pro jogo, quanto pro filme, os sons da morte não são efêmeros. Eles estão ali justamente para fazer com que a gente preste atenção na morte. Os sons têm que captar e manter a nossa atenção. São feitos para nos assombrar acima de qualquer racionalidade, e isso funciona, pelo pra mim. Não consigo esquecer os pedidos dos soldados morrendo naquela praia mesmo depois de 20 anos que o filme foi lançado.

Hyper Light Drifter é outro jogo que usa o som do sofrimento de uma forma que coloca o jogador em um momento e atmosfera específicos. Depois das batalhas contra os chefões, e algumas vezes sem razão alguma, o protagonista tosse. São tossidas profundas e difíceis, que fazem com que a tela pisque e apareçam pequenas poças de sangue no chão.

Imagem: Heart Machine/Reprodução

A tosse, especificamente quando você joga usando fones de ouvido, deixa uma impressão forte. Eu consigo ouvir o som agora mesmo, apesar de não ter jogado desde o lançamento. É um som repleto de camadas emocionais, e o jogo acertadamente deixa que você contemple o barulho por um tempo. Significa alguma coisa; o processo de evolução da doença crônica em direção à morte do personagem retrata o significado e a importância da narrativa de Hyper Light Drifter. Não há como compreender os detalhes da história de uma forma séria sem antes escutar, e ter compaixão por aquela tosse terrível.

Os sons do sofrimento, da morte, e a trilha sonora escrita diretamente das profundezas da perda e da tragédia não deveriam apenas servir como produtos de marketing. Em marketing, há muito tempo existe um conceito de "frequência de efeito", ou seja, quantas vezes você tem que ouvir ou ver alguma coisa até o produto grudar na sua mente e você sentir a necessidade de compra-lo. Estimativas e estudos têm resultados variados sobre esse número, mas o importante é que esse número existe. Há uma técnica de exposição publicitária que vai desde o momento em que você vê algo, até comprar algo.

O trailer de Call of Duty: WWII está usando o potencial sônico da morte e do sofrimento como um meio da tal frequência de efeito. Se você ouvir os berros de alguém morrendo uma certa quantidade de vezes, talvez você compre a ideia de que possa silencia-los de alguma forma. Talvez você pense que possa marchar pelos campos da Europa e corrija os erros do passado. E eu fico imaginando se o melhor jeito de usar esses sons e músicas que tratam do assunto seja prestando atenção e refletindo sobre o seu impacto, em vez de só servirem de artifício para empolgar pessoas com uma campanha publicitária.

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