Conheça “XX”, a primeira antologia de terror dirigida por mulheres

FYI.

This story is over 5 years old.

cinema

Conheça “XX”, a primeira antologia de terror dirigida por mulheres

Diretoras estão elevando o gênero e liderando uma mudança na criação de terror.
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE US .

O terror geralmente não é um gênero muito legal com as mulheres. Filmes slasher e pornôs de tortura têm sido fossas de brutalidade, colocando estereótipos femininos horríveis em moedores — às vezes literalmente — e humilhando virgens bidimensionais até o ponto da paródia. Há exceções, claro, mas no geral o terror não tem sido um passeio divertido para a infame "garota final". Para sobreviver no terror como mulher, você precisa ser uma boa menina, uma inocente sexual, um exemplo da fantasia masculina da ingênua sexy. Fora das telas as coisas não melhoram muito, com a maioria dos diretores sendo homens. Mas tudo isso está mudando. Diretoras como Karyn Kusama ( O Convite), Ana Lily Amirpour ( Garota Sombria Caminha Pela Noite), Jennifer Kent ( Babadook), e Julie Ducourneau ( Grave) estão elevando o gênero e liderando uma mudança na criação de terror. Agora um novo filme, XX, leva essa onda ainda mais além criando a primeira antologia de terror dirigida só por mulheres, com curtas de Karyn Kusama, Roxanne Benjamin, Annie Clark a.k.a. St. Vincent, e Jovanka Vuckovic.

Publicidade

Me encontrei com Vuckovic, que também coproduziu XX, para falar sobre reivindicar o terror e por que Donald Trump pode ser a fagulha criativa que o gênero precisa.

VICE: Fale sobre a inspiração para The Box. De onde veio a história?
Jovanka Vuckovic: The Box é inspirado num conto de um escritor de horror chamado Jack Ketchum. Ele surgiu na cena do terror nos anos 80 e começo dos 90, Stephen King o chama de o cara mais assustador da América. Ele escreve principalmente ficção splatter e era mais conhecido por isso. Li esse conto numa coleção. Ele se destacou para mim, porque os outros contos têm imagens fortes e violentas, e aí tinha essa história de terror existencial meio kafkiana, que pra mim lembrava muito um episódio de Além da Imaginação. Então, quando estávamos montando a antologia, pensei em The Box. Porque a história ficou na minha cabeça, e eu pensei, "essa é minha oportunidade de fazer um segmento de Além da Imaginação". É bem o estilo mesmo, eu acho. Tem tudo menos o Rod Sterling fumando um Camel entre as partes, sabe. A gente tinha a chance de fazer qualquer coisa que quiséssemos e acho que fui a única pessoa do grupo a adaptar um conto.

É muito fácil se identificar com Susan, a protagonista. Como mãe, já houve momento onde você sentiu essa exaustão?
Bom, na história original, é o pai. É sobre o pai, sobre como ele está sempre trabalhando e não consegue se conectar – ele é incapaz de ter uma conexão significativa com a família. Tive que mudar o gênero do protagonista para me encaixar nas regras da antologia: os curtas tinham que ser escritos por mulheres, dirigidos por mulheres e com mulheres nos papéis principais. Então tive que trocar o gênero, mas aí aconteceu essa coisa incrível, e o curta de repente se tornou sobre maternidade ambivalente. Se tornou sobre como nem toda mulher deveria ser mãe. Ele se tornou muito mais pessoal para mim, porque meio que me ajudou a exorcizar algumas das minhas próprias questões com a minha mãe.

Publicidade

Essa é muito uma questão de perspectiva. É a mesma história de terror, mas é impressionante como você pode mudar a perspectiva. Estamos vendo a mesma história de um ponto de vista diferente. Acho que tradicionalmente, já que 90% de todos os filmes feitos nos últimos 100 anos foram feitos por homens, o ponto de vista era a perspectiva deles. Se você troca o gênero do protagonista e sua história desmorona, provavelmente não é uma história muito boa, certo? E nesse caso foi muito fácil, e agora nos identificamos mais com mães. São as mães que estão trabalhando. Estamos vendo mais pais donos de casa.

Conheci uma pessoa um tempo atrás que me disse que estava fazendo 40 anos e não sabia realmente por que tinha tido qualquer um dos filhos. Ela me disse "Não suporto nenhum deles". Isso ficou na minha cabeça e meio que informou a personagem da Susan. Então, sim. O trabalho árduo da rotina. A repetição constante. A repetição de comida. Tipo, fazer tudo do mesmo jeito todo dia. Hora de dormir. Hora do banho. Pode ser exaustivo. Maternidade não é para todo mundo.

Still de The Box .

O filme mostra bem como é importante incluir essas perspectivas. Como a ideia da antologia surgiu? Como vocês se envolveram?
Tudo começou ao redor da mesa do nosso produtor. A esposa dele notou que todos os filmes que ele produzia para sua empresa eram sempre de homens. Ela disse "Quando você vai fazer algo sobre isso?" Ele notou que as mulheres estavam sendo colocadas de lado em trabalhos de direção em todas as antologias de filmes que estavam saindo. Então, sendo um cara branco, ele sabia que não podia ser o rosto do projeto, então me ligou. Na época eu estava planejando uma estratégia de financiamento coletivo para fazer minha própria antologia de terror só com mulheres. Então o timing foi perfeito. Aí fizemos uma lista e começamos a entrar em contato com as pessoas. Fizemos uma antologia porque não havia uma antologia só de mulheres. Fizemos XX numa resposta direta à falta de oportunidade para mulheres no cinema. Particularmente no gênero do terror. O terror não é inerentemente sexista, mas é uma área onde as mulheres são historicamente mal representadas na tela. E subrepresentadas atrás das câmeras. Somos esfaqueadas e torturadas, e sim, também somos a garota final, mas a garota final em si também é uma. Ela não é uma pessoa de verdade. Por mais que ela seja criativa em sobreviver e superar o assassino, ela ainda não é uma pessoa real.

Publicidade

Sim, ela é a virgem, ela é uma boa menina.
Sim, mas às vezes não. O melhor exemplo, claro, é Ellen Ripley nos filmes Alien. Mas ela começou como um homem, e Ridley Scott só transformou a personagem em mulher e não mudou mais nada no roteiro. Não é assim que o resto das garotas finais geralmente são interpretadas. Estamos começando a ver algumas mudanças agora com mulheres escrevendo e dirigindo. Estamos começando a ver o que chamo de filmes de terror feministas. Um filme de terror feminista é só um filme que retrata mulheres como seres humanos reais. Não é, tipo, as mulheres são as assassinas, ou que temos que virar o gênero de cabeça para baixo. Essas coisas são superficiais. O que importa é que as mulheres estão sendo retratadas como seres humanos reais. Em todos os estilos de vida que vivemos e, sabe, tão danificadas quanto podemos ser. Precisamos de mais do que essas personagens rasas. Então esse foi o ímpeto que criou XX.

"Mais de 50% das pessoas formadas em cinema são mulheres, e ainda assim, menos de 7% de todos os diretores trabalhando são mulheres."

Há pouquíssimas mulheres diretoras. Detesto ter que apelar para estatísticas, mas esse é o jeito mais fácil de pintar esse retrato. Mais de 50% das pessoas formadas em cinema são mulheres, e ainda assim, menos de 7% de todos os diretores trabalhando são mulheres. Isso é um problema. É um problema que não tem solução fácil. Mesmo com os esforços da ACLU investigando as práticas de contratação de Hollywood e vários projetos de ativismo online, o relatório de diversidade acabou de ser divulgado. E as diretoras caíram mais 2%. Então está piorando em vez de melhorar.

Publicidade

É uma questão política?
Estamos num clima político agora, particularmente nos EUA, onde as mulheres têm muito o que temer, então algo assim oferece um vislumbre de esperança para outras cineastas e a futura geração, tipo, não importa quanto as coisas pareçam ruins, mesmo com o Hitler Laranja no poder, essas mulheres se uniram e fizeram a primeira trilogia de terror só com mulheres. Essa energia era palpável no ar no Sundance. Uma das nossas diretoras não pode ir à estreia porque estava marchando em Washington. Então, sabe, não dá para impedir um filme como XX de ser politizado porque, quer dizer, desde sua concepção ele era político. É uma declaração política.

Você tem algum conselho para os espectadores, que estão lendo isto e pensando "Quero ajudar, mas o que posso fazer?"
Você pode ajudar com seu todo poderoso dinheiro. Infelizmente, as mulheres não têm a mesma permissão de falhar que os homens. Se nosso filme não for bem, vamos parar na cadeia dos diretores por muito tempo, então precisamos que as pessoas assistam XX. O único jeito que teremos chance de fazer mais filmes é pagando esse filme. É um negócio. Seria ótimo fingir que tudo isso só tem a ver com nossas buscas criativas, mas é um negócio, e essas empresas – os financiadores precisam receber seu dinheiro de volta. Por favor, vá assistir filmes feitos por mulheres. Isso nos ajudaria muito.

Você teve alguma surpresa nas histórias que as outras diretoras escolheram contar?
Fiquei surpresa que todas as histórias acabaram sendo sobre família. Uma total coincidência. Quer dizer, você pode ler de qualquer jeito como cinco diretoras acabaram fazendo histórias sobre família, mas aconteceu por acidente. O mais engraçada é que a Annie [Clark] e [a animadora] Sofia [Carillo] não gostam de filmes de terror. Elas não assistem filmes de terror. Elas têm medo. A Annie cobriu o rosto durante a maior parte da exibição no Sundance.

Publicidade

Still de The Box .

Parece que as mulheres estão deixando uma marca real no terror agora, com você, Karyn Kusama, Julie Ducournau…
Sim e Ana Lily Amirpour. Há um pequeno movimento de filmes de terror com diretoras e isso está fazendo ondas. Mas ainda é algo pequeno. O terror, em particular, sempre foi uma ótima mola para exercitar nossos medos culturais. Quer dizer, se você olha para os anos 50, eles tinham medo de coisas diferentes do que temos agora, certo? Estávamos olhando para o céu e as ameaças eram o comunismo, invasão alienígena e invasores de corpos, e, claro, perda de autonomia pessoal por medo da invasão. Aí, nos anos 60, a preocupação mudou para a Guerra do Vietnã, então os filmes de terror se tornaram sobre o medo do outro e de voltar da guerra mudado de algum jeito. Nos anos 70, começamos a ter medo uns dos outros, e você tem o Massacre da Serra Elétrica, onde você dirige alguns quilômetros além da sua casa e se vê como um estranho numa terra estranha. O terror evoluiu como uma plataforma muito maleável para falar sobre o que temos medo, e felizmente, as mulheres finalmente estão tendo oportunidade de falar sobre o que temos medo. Naturalmente, o tema da narrativa é um pouco diferente. Não acho que o que comanda as histórias em si é diferente do que o que um diretor homem faria. É apenas uma pequena mudança de perspectiva que faz isso parecer tão diferente, e o gênero do terror precisa muito de novas perspectivas e mulheres têm muito disso para oferecer.

Como você acha que o terror vai evoluir para reagir ao que está acontecendo no nosso mundo agora?
Trump e tudo mais que está acontecendo, o clima político é um grande combustível para a criatividade. Estou muito curiosa para ver que tipo de filme de terror vai emergir deste tempo, e olhar para isso daqui dez anos e ver qual foi a reação cultural. Quer, dizer, um dos melhores jeitos de lutar contra coisas é fazendo coisas. E as pessoas vão fazer coisas sobre o que está acontecendo agora. Acho que estamos com muito medo. Não apenas as mulheres. Todo mundo tem medo de um desastre em potencial da presidência do Trump.

Siga a Amil Niazi no Twitter .

Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.