Como um título cancelado de ‘Saints Row’ encontrou seu lugar na internet

Há certa mística em torno de games cancelados. Assim que a notícia sai, as pessoas querem saber o que perderam e por que raios um joguinho tão bonitinho foi interrompido. Não é raro que, durante o processo, a curiosidade do público alimente um mercado underground de versões preliminares de títulos rejeitados.

O vazamento, claro, costuma vir de alguém de dentro da desenvolvedora: um antigo funcionário, um publisher ou funcionário de veículo de mídia bem relacionado que não tem razão para se preocupar com questões legais. (Não nos encaixamos aqui. Ok, talvez um pouco. Só um pouco.)

Capaz de você já ter jogado um. Alguns dos mais notórios são: um game de Steven Seagal, um jogo de luta/ação bizarro de NES com um super-macaco wrestler e um título de ação sobre os California Raisins. Ter a chance de jogar esses games, muitas vezes inacabados, nos dá a rara oportunidade de ver o que acontece nos bastidores do desenvolvimento de jogos. Quase sempre dá pra entender direitinho por que resolveram cancelar a porra toda.

É muito raro, porém, que uma desenvolvedora atuante lance oficialmente na internet um ROM ou ISO de um game cancelado. E foi o que rolou no mês passado com a empresa americana Volition que largou Saints Row: Undercover na internet, de graça, para quem quisesse.

Caso você não a conheça, a série Saints Row é bem parecida com Grand Theft Auto: você corre por um mundo aberto, rouba carros e atira em bandidos. A diferença está no humor. Grand Theft Auto sempre teve senso de humor, digamos, mais elegante, mais realista. Saints Row, por sua vez, é pastelão puro, com veículos que atiram cocô por uma mangueira e uma arma de dubstep que bota os inimigos pra dançar antes de morrer.

Saints Row: Undercover é de 2009 e, segundo a produtora, foi desenvolvido no intervalo entre Saints Row 2 e 3. Concebido como uma versão de Saints Row 2 para PSP, as limitações técnicas do hardware da Sony acabaram transformando o game em algo próprio, com enredo que se ligava a Saints Row 2 e 3. Há um longo guia de design, de 122 páginas e um passo-a-passo em texto disponível para quem quer sacar todos os detalhes da história e funcionalidades do game final.

"Saints Row Undercover ainda era um protótipo quando foi cancelado", me disse Mike Watson, community manager da Volition. "Havia um punhado de missões jogáveis com diálogos legendados e um mundo aberto básico que tomava o mapa de Saints Row 2 como base. A física do game também era muito primária, com qualquer colisão fazendo com que as animações de NPCs [sigla em inglês para "personagem não-jogável"] falhassem e os carros perdessem o controle."

A documentação de design do game foi criada dentro da própria Volition e depois entregue a uma empresa terceirizada. "Quando um estúdio terceirizado trabalha em um título Saints Row como este, geralmente algum produtor nosso supervisiona o projeto enquanto o resto do nosso estúdio trabalha em cima de nossos games", continuou Watson. "O produtor da Volition envolvido nesse projeto guardou o Guia de Design do Jogo e passo-a-passo em nossa rede, o que só descobrimos ao buscar por dados de nossos projetos arquivados."

O lançamento do game não-finalizado foi feito em parceria com o Unseen64, site que documenta tantos games cancelados quanto mudanças das versões primárias e finalizadas. No final do stream no YouTube que revelava o game, a Volition surpreendeu a todos ao levar a uma página do Unseen64 com diversos links para download e instruções de como usar um emulador de PSP.

"A Volition entrou em contato conosco antes de revelar o jogo para perguntar se podíamos ajudá-los com uma página informativa", me disse Monokoma, o webmaster italiano responsável pelo Unseen64. "Dessa forma as informações do jogo não estariam espalhadas ou perdidas pela rede. Acho que o pessoal lá já nos conhecia, já que havíamos publicado alguns artigos sobre outros games da série Saints Row no passado e confiavam o suficiente em nós."

O código do jogo foi descoberto em um antigo "devkit" de PSP – um conjunto de ferramentas, geralmente comprado a grandes custos de fabricantes de consoles, que permitem o desenvolvimento e teste de games para plataformas específicas.

"Esse devkit se assemelha a um PC, mas com o mesmo hardware interno que um PSP comercial, incluindo funcionalidades extra como saídas VGA e RCA para captura, e um drive de DVD-ROM para gravar versões mais novas do software e testar", explicou Watson. "O PSP anexado é semelhante ao comercial, mas com um grande cabo saindo da traseira que se liga ao devkit. Tal PSP não tem nada dentro, serve como controle e falantes, para onde o devkit envia dados de áudio, vídeo e rede. Há também chaves DIP especiais no devkit que um desenvolvedor pode utilizar no game para ativar e desativar funcionalidades de debug e dispositivos de input externo como teclados."

Mais interessante que o aparelho, era o conteúdo do devkit. "Um DVD-R com o título em pincel permanente 'SR PSP 9-8-2009' foi encontrado no drive ótico do devkit, e então criamos uma imagem do disco [um ISO], lançado no unseen64.net para fins de memória," declarou Watson.

Uma questão que ficou na minha cabeça, porém, foi a legalidade de tudo – afinal Volition e a publisher Deep Silver ainda trabalham com a Sony, fabricante do PSP. Haveria a possibilidade do tiro sair pela culatra ao lançar um ISO inacabado e aconselhar que as pessoas o emulassem? "Até onde eu sei, eles fizeram todos os questionamentos legais antes do lançamento", disse Monokoma. "Há preocupações, claro, mas como o game era deles, a Sony não interferiria de forma alguma".

"Todos os créditos vão pra Volition", disse Monokoma. "Apenas servimos de intermediários como lugar confiável para hospedar arquivos e informações."

Em um ambiente cheio de sigilo e contratos de confidencialidade, a franqueza com que a Volition apresenta Saints Row: Undercover ao mundo é empolgante para os historiadores dos games. "Após esse feito maravilhoso da Volition, espero mesmo que mais desenvolvedores sigam o exemplo e facilitem o trabalho de conservação de games perdidos", finalizou Monokoma.

Tradução: Thiago "Índio" Silva