Este artigo foi originalmente publicado na VICE Espanha.Em Fevereiro de 2018, 21 câmaras descartáveis foram entregues a 30 crianças dos bairros de Orcasur, em Usera e Las Torres, em Villaverde, Madrid, Espanha. Todas têm entre 9 e 12 anos e todas participaram no Projeto Barrios, uma iniciativa artística colaborativa levada a cabo pelas associações Bombo e Caja, Coletivo Masquepalabras, Ciudad Distrito e Intermediae de Matadero de Madrid, que visa levar a cultura urbana em todas as suas formas a crianças de diferentes bairros da periferia.
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Com as máquinas, fotografaram as suas escolas, as suas casas, os parques em que brincam, o quotidiano de dois bairros que "não aparecem em guias turísticos, nem em séries de televisão, nem em campanhas publicitárias, nem em inquéritos de rua de revistas, nem nos telejornais… e quando aparecem nos telejornais, geralmente é porque não são boas notícias", como escreve Sergio C. Fanjul no epílogo do livro que, depois de reveladas as imagens, acabam de publicar em colaboração com o La Troupe.
"Este é um bairro construído do zero, feito de suor, com carinho e com trabalho. Batemos no fundo para aprender a voar e seguimos em frente para podermos ajudar-nos", diz um dos textos manuscritos com letra infantil que acompanham as fotografias do livro. É um fragmento de uma das músicas que, no quadro do projecto, as crianças escreveram. Com elas, gravaram videoclips e deram concertos."Orcasur é um bairro criado após a redistribuição de habitação social nos anos 80 em Usera e Las Torres, em Villaverde, é o resultado do realojamento das pessoas que viviam em bairros erguidos em descampados naquela zona", explica Javier Benedicto, coordenador do livro de fotografias. E acrescenta: "O projecto Barrios tem três vertentes: social, cultural e artística, tudo dentro da estrutura da cultura hip hop. Tradicionalmente, a cultura urbana tem mostrado que oferece resultados e que é uma ferramenta muito útil para trabalhar com a população desfavorecida. Na década de 1980, quando nasceu em Nova Iorque, foi em bairros periféricos com uma população jovem sem presente e sem futuro, longe do centro, em ambientes tradicionalmente negligenciados pelas instituições. Depois trasladou-se pelo globo nesse sentido, com um peso educacional e de intervenção, bem como artístico".
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Mas, antes de distribuir as câmaras entre as crianças houve muito trabalho prévio: duas bloc parties nas quais participaram Denom, Dano e Nathy Peluso, cursos de redacção criativa que estruturaram o projecto durante um ano e que tinham como objectivo que as próprias crianças liderassem o processo criativo que consistia em escrever, fazer músicas, concertos e videoclips, workshops de graffiti e aulas de produção ou interpretação para os telediscos. O photobook é o culminar do trabalho, que serve para tornar visível como é a vida nos bairros onde eles já cantaram, onde filmaram os seus vídeos e deram os seus concertos."No curso de fotografia, explicámos o que é a foto analógica e demos-lhes as câmaras. A ideia era que pudessem retratar o ambiente à sua volta e representar a forma como eles se movem nele. São crianças que estão habituadas à fotografia, porque têm telemóveis à mão E em muitas das fotos podes ver selfies e jogos curiosos que estão mais associados ao digital", explica Javier.E acrescenta: "No entanto, eles respeitaram muito bem os tempos e entenderam que não se tratava de desperdiçar o rolo inteiro num dia, embora continuassem a perguntar quando tiravam uma fotografia 'Onde é que eu a vejo agora?'. Do processo saíram 500 fotografias das quais, em conjunto com o La Tropue, colectivo artístico especializado em livros fotográficos, montámos o livro em colaboração, também, com as miúdas e os miúdos".
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No dia 5 de Junho último, as crianças foram ao Matadero de Madrid para apresentarem o seu projecto e darem uma conferência de imprensa. "A diferença em relação às câmaras era que não podíamos ver [as fotos] e foi difícil tirar fotografias, porque não sabias onde focar, onde a pessoa estava ou o que querias fotografar, porque não havia ecrã", salienta Paula quando questionada sobre a diferença de fotografar em analógico e digital."Sinceramente", acrescenta Javi, uma criança muito pequena, com olhos muito grandes e um dom da palavra que faz a sala toda sorrir, "eu gosto de tirar fotos com máquinas analógicas mais do que com um telemóvel. É um sentimento diferente, tem aquele mistério de não saberes como é que as fotos saíram e se fizeste algo errado e não tens outra suplente, tens que enfrentar isso”.
"Os bairros também são um mito, um imaginário, uma grande extensão de casas indiferentes e desocupadas, autocarros que iluminam a noite carregados de trabalhadores, bibliotecas públicas e escadas rolantes que levam a não sei onde. O som do bombo e da caixa, o rap no parque, o hard rock da periferia. Andas e andas e os bairros não acabam, a cidade nunca acaba e continuam a aparecer edifícios, blocos e mais blocos de vidas e mais vidas que são o mais importante para si mesmas ", escreve Fanjul nas últimas páginas de Barrios.Um livro que, desde o metro e quarenta e o metro e cinquenta de altura que medem a maioria dos fotógrafos que nele participaram, retrata o dia-a-dia de todos aqueles autocarros que iluminam as noites, cheios de trabalhadores árduos com o olhar já cansado. O quotidiano desses blocos e mais blocos de apartamentos cheios de vidas e mais vidas que nunca acabam e que não aparecem, ou não costumam aparecer, na televisão. E se aparecem, não é por nada que seja bom.
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Vê abaixo mais fotos de "Barrios".
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