Ilustração: Cassio Tisseo
Da coluna Geopolítica das Copas“Não se deve subestimar, como fator da valorização do país e de fusão de sentimentos nacionais, a vitória obtida na Suécia pelo selecionado brasileiro de futebol. O Brasil sagrou-se campeão do mundo no esporte mais popular que se cultiva em nossa terra. Além disso, houve senso de equipe e boa organização, o que pode exprimir um progresso geral do nosso povo, no sentido de preparar-se mais disciplinadamente nos vários campos da atividade humana.”O parágrafo acima abre o editorial da Folha da Manhã em 1º de julho de 1958. Dois dias depois de o Brasil conquistar seu primeiro título mundial de futebol, com uma goleada por 5 a 2 sobre a Suécia, um dos principais jornais paulistanos cravava que os campeões deveriam servir de exemplo para o povo. Eram tempos de autoestima elevada e de otimismo: sob o governo de Juscelino Kubitschek e seu Plano de Metas que previa o crescimento de “50 anos em 5”, o país construía uma nova capital e dava sequência a um processo de industrialização. Chegar ao topo do mundo no futebol se encaixava perfeitamente na vibração do momento, e JK soube muito bem capitalizar a conquista, recebendo os campeões na sacada do Palácio do Catete e posando para fotos ao lado de Pelé, Garrincha e do capitão Bellini com a taça Jules Rimet nas mãos.A conquista completa 60 anos nesta semana. Mas a única novidade, ali, era mesmo a taça. Oito anos antes, o Brasil perdera a Copa organizada em casa, derrotado de virada pelo Uruguai no Maracanã, numa história muitas vezes já contada: o gol de Ghiggia, o castigo eterno de Barbosa, o silêncio que envolveu o Maracanã. Menos se falou sobre as decisões equivocadas dos dirigentes, a principal delas tirar o time da sossegada concentração no Joá, na então longínqua zona oeste do Rio, para leva-lo ao burburinho de São Januário, o estádio do Vasco, onde dormiram na véspera do jogo e, pela manhã, tiveram de aturar discursos de políticos que os saudavam como “campeões do mundo”.A relação com os poderosos está no cerne da participação brasileira nas Copas do Mundo desde sempre. O torneio, como se sabe, começou em 1930 pouco prestigiado, criado meio de improviso por desentendimento entre a Fifa e o Comitê Olímpico Internacional: o profissionalismo já era uma realidade no futebol europeu e começava a se espalhar pelo mundo, e o COI insistia em não aceitar que pessoas que recebiam para jogar fizessem parte dos Jogos Olímpicos. A treta ganhou oxigênio extra às vésperas dos Jogos de Amsterdã, em 1928, quando os organizadores da Olimpíada seguinte, a de 1932, em Los Angeles, decidiriam excluir o soccer do programa devido à baixa popularidade do esporte no país. A Fifa resolveu então realizar seu próprio Campeonato Mundial, para dali a dois anos, e o Uruguai, vencedor do torneio de olímpico de futebol em 1924 (em Paris) e 1928, ganhou o direito de ser sede.O problema é que, em tempos de viagens internacionais feitas preferencialmente a navio, o Uruguai era longe pra diabo. O crash de 1929 ampliou as dificuldades econômicas de um mundo que vivia o período de transição entre as duas Grandes Guerras. E, assim, apenas quatro seleções europeias toparam cruzar o Atlântico para participar: Bélgica, França, Romênia e Iugoslávia. Juntaram-se a Estados Unidos, México, aos anfitriões uruguaios e a outros seis vizinhos sul-americanos: Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e, claro, o Brasil.Só que o Brasil já vivia suas próprias tretas. Na política, o país vivia a tensa campanha eleitoral que resultou na vitória nas urnas de Júlio Prestes sobre Getúlio Vargas e no consequente golpe de Estado que, em outubro, colocou o caudilho gaúcho no poder pelos 15 anos seguintes. No futebol, o chamado “amadorismo marrom” era a regra: os jogadores oficialmente não eram profissionais, mas notoriamente todos os jogadores dos principais clubes recebiam para jogar. Para completar, dirigentes de Rio e São Paulo se desentendiam para ver quem mandava mais, e o técnico Píndaro de Carvalho só pôde convocar jogadores que atuavam no futebol carioca – a exceção foi o atacante Araken Patusca, ídolo do Santos que estava então brigado com o clube. O Brasil caiu na primeira fase.Quatro anos depois, era tempo de cruzar o Atlântico de volta para a primeira Copa na Europa, desta vez na Itália. A treta agora era outra: o profissionalismo foi oficializado em 1933, mas nem todos os clubes aderiram e várias ligas estaduais racharam, com a criação e torneios paralelos. A CBD (Confederação Brasileira de Desportos, nome da CBF na época) não conseguiu convocar todos os jogadores que queria – o Palestra Itália chegou a esconder seus atletas numa fazenda no interior paulista e depois numa casa no litoral, para que eles não pudessem viajar. Resultado: numa Copa em mata-mata, o Brasil foi eliminado logo na estreia, com derrota por 3 a 1 para a Espanha.Para 1938, os cartolas amenizaram as brigas de egos e decidiram, finalmente, levar o que havia de melhor. Mas aí havia um outro ingrediente na receita: o Estado Novo, regime ditatorial estabelecido por Vargas no ano anterior, que queria utilizar o esporte como arma de propaganda na tentativa de enfim estabelecer uma identidade nacional. Aquela foi a primeira preparação decente de uma seleção brasileira, a primeira que foi acompanhada de perto pela imprensa e transmitida ao vivo, pelas ondas do rádio, na voz de Gagliano Neto, que transmitia direto da França sem saber se estava sendo ouvido no Brasil. Estava, e como estava: Getúlio decretou feriado nos dias de jogos e espalhou alto-falantes pelas praças das grandes cidades a fim de que todos pudessem ouvir o desempenho do “scratch”. O terceiro lugar, frustrante num primeiro momento, foi depois considerado um excelente resultado que mostrava ao mundo a força do Brasil.A Segunda Guerra Mundial cancelou as Copas de 1942 e 1946. O torneio de 1950, no Brasil, foi apontada como uma prova da capacidade brasileira de organizar grandes eventos – pena que pouca gente viu, já que o Mundial, ainda na ressaca do pós-guerra, teve apenas 13 participantes, seis deles europeus: Suíça, Iugoslávia, Itália, Suécia, Espanha e Inglaterra, os criadores do futebol, que finalmente se rendiam à disputa. Desportivamente, como vimos no começo do texto, ainda não havia chegado a nossa vez. O trauma foi tão grande que até a camisa branca foi abandonada.Em 1954, o Brasil pela primeira vez disputou as Eliminatórias, no começo do ano, eliminando Chile e Paraguai e garantindo a chance de ir jogar na Suíça. A estreia da camisa amarela em Copas foi boa: 5 a 0 sobre o México. No jogo seguinte, contra a Iugoslávia, um empate por 1 a 1 classificou as duas equipes para os mata-matas – mas os jogadores brasileiros, frustrados com o placar e mal informados pelos dirigentes, saíram de campo lamentando mais uma eliminação.Que não tardaria: diante da Hungria, considerada a melhor seleção do mundo na época, o Brasil sucumbiu por 4 a 2 e novamente perdeu as estribeiras, partindo para as já famosas cenas lamentáveis, com direito a uma garrafa atirada pelo craque Puskas, que estava machucado e nem sequer havia jogado, na testa do zagueiro Pinheiro. O árbitro, o inglês Arthur Ellis, foi acusado de roubar para os húngaros por ser “comunista”. E o Brasil entrou numa paranoia de que não conseguiria ser campeão mundial por causa da “fraqueza emocional” dos jogadores, especialmente dos negros.Para o Mundial da Suécia, então, criou-se uma preparação que incluiu dentista e psicólogo. Ganharam fama, após vazamento na imprensa, as consultas do doutor João Carvalhaes com Garrincha que apontaram a completa inabilidade do craque para ações intelectuais. O psicólogo sempre se defendeu, alegando que seus testes seguiam resultados lógicos, mas que, mesmo que tivesse apontado “instrução primária, inteligência abaixo da média e agressividade zero” para Garrincha, em nenhum momento quis vetar o ponta botafoguense na Copa. Coincidência ou não, o Brasil começou a Copa com apenas um negro como titular, Didi, e terminou com outros cinco: Djalma Santos, Zito, Garrincha, Vavá e Pelé.O bicampeonato veio em tempos de tensão: João Goulart precisara ceder ao parlamentarismo para assumir o poder após a renúncia de Jânio Quadros, e seria derrubado após menos de dois anos e meio na presidência – mas com tempo suficiente para também tirar sua foto com os campeões no Chile.A Copa de 1962 seria a última disputada pelo Brasil sob regime democrático durante um longo tempo. No Mundial seguinte, os militares apenas observaram de longe a confusão da seleção, que chegou a reunir 45 jogadores durante a preparação para a Copa no berço do futebol. Não poderia dar mais errado, e o Brasil caiu ainda na fase de grupos, após derrotas para Hungria e Portugal.Então a ditadura resolveu se aproximar mais do futebol. Para a Copa de 1970, a comissão técnica passou a ter a participação de militares, como o capitão do exército Cláudio Coutinho, escolhido para comandar a preparação física e que introduziu o cooper como exercício para os jogadores. O técnico João Saldanha, comunista notório, escolhido para conduzir a equipe nas Eliminatórias, em 1969, deixou o cargo meses antes do Mundial após maus resultados em amistosos e uma troca de farpas com o presidente Emilio Garrastazu Médici, que sugerira a convocação de Dario, o Dadá Maravilha, centroavante do Atlético Mineiro: “O presidente escala o ministério e eu escalo a seleção”, disse.Mas a gota d’água para a queda de Saldanha foi invadir a concentração do Flamengo, em São Conrado, zona sul do Rio, com uma arma na mão para reclamar das críticas feitas pelo então técnico rubro-negro, Yustrich, às atuações da seleção. “Cadê você, canalha?”, gritava João, segundo relato do jornalista Michel Laurence. A CBD achou que o técnico passara dos limites e o mandou embora, convidando Zagallo. O novo técnico convocou Dadá (mas não o escalou em nenhum jogo), o Brasil ganhou o tri e a posse definitiva da Jules Rimet, e Médici posou orgulhosamente com Pelé, os jogadores e a taça, depois do curtir o privilégio de ver os jogos em cores na central da Embratel – os brasileiros primeira vez veriam ao vivo a Copa via satélite, mas em preto e branco, já que a TV colorida só começaria oficialmente no país em 1972. Para Médici, o título no futebol era a coroação do sucesso do regime, acompanhado pelo Milagre Econômico, a consolidação do chamado Brasil Grande, aquele que quem não amava deveria deixar. Como hoje, oposicionistas discutiram na época se seria correto ou não torcer pelo Brasil – mas poucos resistiram a Pelé & cia.Parecia o início de uma nova era de vitórias, mas Pelé pediu aposentadoria da seleção no ano seguinte e se recusou a voltar para o Mundial de 1974, na Alemanha. O Brasil fracassou fora de campo, mas se deu bem fora, ou ao menos um brasileiro: João Havelange, que comandara a CBD nas duas décadas anteriores e, naquele ano, foi escolhido como presidente da Fifa. Havelange não era militar, mas sempre se deu bem com eles – e não só os brasileiros, já que vivemos na semana passada como fechou os olhos para as pressões dos militares argentinos em 1978.Naquela Copa, aliás, o Brasil foi dirigido pelo militar Coutinho, que fez algumas escolhas duvidosas (deixou Falcão no Brasil, por exemplo) e conseguiu apenas o terceiro lugar, mesmo com o time invicto – batizou o desempenho como “campeão moral”. A essa altura, o comando da CBD estava nas mãos de outro militar, o almirante Heleno Nunes, que comandaria a transição para a CBF, completada em 1979.A ditadura já estava ruindo na Copa de 1982, e o insucesso da maravilhosa equipe de Telê Santana pouco inferferiu nos destinos políticos do país – mesmo que ostentasse no escudo remodelado da CBF, ao lado da Jules Rimet, um ramo de café. A oposição se destacou nas eleições para governador realizadas no fim do ano, e a ditadura morreu no início de 1985. José Sarney assumiu a presidência após a morte de Tancredo Neves, e Telê voltou ao comando da seleção para a Copa de 1986. O país vivia momentos de euforia na luta contra a inflação, mas no futebol a fila só aumentou, com a eliminação nos pênaltis para a França.Recém-eleito com imagem jovial, Fernando Collor fez questão de treinar com a seleção de Sebastião Lazaroni usando a camisa 20, número que usara na campanha eleitoral, mas o desempenho do Brasil na Copa de 1990 foi um fiasco, com queda nas oitavas de final. Mas vários dos jogadores permaneceram no time para a conquista do tetra em 1994, nos Estados Unidos, um símbolo importante no renascimento da autoestima do brasileiro – afetada por anos de maus governos, planos econômicos fracassados e a morte, meses antes, do grande ídolo Ayrton Senna, que conseguia nas pistas de Fórmula 1 as vitórias que não vinham nos campos de futebol.Foram meses agitados: Senna morreu em 1º de maio; em 1º de julho, o Plano Real foi implantado; e, no dia 17 do mesmo julho, Roberto Baggio bateu o pênalti para fora. Os jogadores e dirigentes resolveram aproveitar o clima de festa, a moral de tetracampeões e a paridade do real com o dólar para entrar no país com nada menos que 11 toneladas de artigos importados sem o devido pagamento de impostos – o popular “voo da muamba”. O presidente da CBF, Ricardo Teixeira, trouxe um conjunto de chopeiras para instalar num bar que estava montando; o lateral Branco, autor do gol decisivo contra a Holanda, trouxe uma cozinha completa avaliada em US$ 18 mil – o limite por pessoa era de US$ 500. O caso se arrastou por algum tempo, até a CBF pagar a dívida de todo mundo, em torno de R$ 46 mil.Dali em diante, os resultados nas eleições presidenciais pouco se atrelariam aos resultados eleitorais – se Fernando Henrique Cardoso se elegeu em 1994, foi muito mais devido ao sucesso do Plano Real do que ao tetra. O último título, em 2002, proporcionou a FHC imagens hilárias com Vampeta dando cambalhotas na rampa do Planalto – mas a eleição foi vencida por seu opositor, Luiz Inácio Lula da Silva. O petista, boleiro de carteirinha, batalhou para trazer a Copa de 2014 ao país, mas não viu títulos nem em seu governo nem no da sucessora Dilma Rousseff – que, na abertura do Mundial brasileiro, foi xingada por torcedores. Em 2006, Lula ainda se envolveu em polêmica com Ronaldo Fenômeno numa teleconferência com alguns jogadores: “Dizem que ele está gordo”, disse o presidente, na ausência do camisa 9. Ronaldo, que de fato estava obeso e não jogou quase nada naquela Copa, rebateu em seguida: “Também dizem que o presidente bebe”. Os dois fizeram depois as pazes, mas o Fenômeno se vingaria mesmo na campanha pelo impeachment de Dilma, ao aparecer numa passeata contra Dilma com a camiseta “A culpa não é minha – eu votei no Aécio”.E aí chegamos a 2018. Com popularidade baixíssima, Michel Temer nem sequer quis saber de se encontrar a seleção de Tite, que nem sequer veio ao Brasil para se preparar – se reuniu direto na Europa. Mas obviamente não resistirá a tentar pegar carona num eventual hexa. Nos primeiros jogos, limitou-se a tuítes discretos. Vamos ver o que acontecerá se, no dia 15, o Brasil sair campeão de Moscou.Fernando Cesarotti, 40, é jornalista e professor universitário. Assina a coluna Geopolítica das Copas , sobre futebol e política, durante o Mundial da Rússia.Siga a VICE Brasil no Facebook , Twitter , Instagram e YouTube .
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Publicidade
Do divã para o alto do pódio
Publicidade
A seleção veste farda
Publicidade