SUS, de referência mundial ao caos: o relato de uma médica
Ilustração: Verena Antunes/ VICE

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Relato

SUS, de referência mundial ao caos: o relato de uma médica

Uma profissional fala sobre cirurgias interrompidas por falta de materiais, plantões de 24h e diminuição de 40% do corpo médico.

Há um ano o estado do Rio de Janeiro enfrenta uma de suas piores crises: servidores sem salários ou com os mesmos atrasados e parcelados, cofres vazios e serviços públicos caminhando rumo à falência. Na esfera da saúde, as notícias não são melhores. Com redução do números de leitos, falta de medicamentos e de insumos hospitalares, equipamento tecnológico precário e vínculos empregatícios frágeis com os profissionais, o Sistema Único de Saúde (SUS) respira por aparelhos. O clima de animosidade entre a classe médica e o atual ministro da saúde, Ricardo Barros, ficou ainda pior quando ele disse que os médicos deveriam parar de "fingir que trabalham".

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Prestes a completar 10 anos de diploma em medicina, Ana Lúcia* relatou à VICE o que tem vivenciado recentemente dentro do SUS do Rio de Janeiro. Se, nos tempos da faculdade, atuar no sistema público dava "status", hoje soa mais como ideologia. A profissional detalha como o sucateamento reflete no esgotamento físico e emocional dos médicos, assim como na relação humana com seus pacientes e na qualidade do serviço prestado. Tido como um dos maiores sistemas público de saúde no mundo, o SUS já foi utilizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como referência para outros países. Agora, parece caminhar por uma estrada perigosa. Leia o relato abaixo.

Sou médica e trabalho no serviço de urgência de um grande hospital municipal e em um serviço ambulatorial federal de cirurgias eletivas, ambos no Rio de Janeiro. A maioria das unidades do SUS funciona de forma insalubre, superlotada, sem os recursos necessários. No SUS, toda a miséria que é jogada pra baixo do tapete pelo governo vem à tona de forma escancarada. No SUS, você sente o cheiro da miséria, ouve o choro da dor, não há como fechar os olhos para a vida que essa população leva. E isso choca, faz mal. Vejo muitos médicos com problemas psicológicos, deprimidos, esgotados. O sentimento prevalente é a desesperança e a exaustão.

Ilustração: Verena Antunes/ VICE

As crianças me tocam de forma mais intensa. Recentemente, me chamou a atenção o caso de uma criança de três anos de uma família muito pobre com um tumor intracraniano que evoluiu a ponto de causar uma paralisia facial e sair pelo ouvido da criança, sem que ela conseguisse entrar no sistema para ser atendida.

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"Vejo muitos médicos com problemas psicológicos, deprimidos, esgotados. O sentimento prevalente é a desesperança e a exaustão"

Outro caso que me impressionou foi o de uma menina submetida à segunda cirurgia por uma doença crônica e que foi internada, anestesiada, aberta em centro cirúrgico e não pôde ter sua operação feita porque um material necessário quebrou durante o procedimento e não havia outro para substituição. A cirurgia foi interrompida sem a doença ter sido removida. Imaginem a situação do médico ao ter que explicar algo assim para a mãe. Que ela deve aceitar o inaceitável.

É comum que caixas com pinças de cirurgias ou materiais para a realização de exames clínicos sejam comprados pelos próprios médicos e residentes. "Vaquinhas" entre os profissionais para continuar realizando determinados procedimentos são comuns, principalmente em ambiente de ensino.

Os residentes são os médicos mais próximos dos pacientes do SUS. São eles que os visitam todos os dias, que agendam as cirurgias, que os orientam em pré e pós-operatórios. Criam laços, vínculos, ganham humildes e valiosos presentes. É durante a residência que moldamos a relação médico X paciente que desempenharemos ao longo da vida. É neste período que começamos a repensar as indicações de uma cirurgia de acordo com o contexto social da família envolvida; que passamos a prescrever os remédios de acordo com o que aquela família tem condições de pagar.

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"É comum que caixas com pinças de cirurgias ou materiais para a realização de exames clínicos sejam comprados pelos próprios médicos e residentes"

O sentimento de impotência é constante, como quando cancelamos uma cirurgia para colocar outra mais urgente ou não pedimos todos os exames necessários por não estarem disponíveis. É uma tristeza que o profissional acaba absorvendo ao longo do tempo. Isso leva ao aumento da insensibilidade e da falta de empatia, endurece as relações humanas.

Os médicos que trabalham em esquema de plantão (geralmente nas unidades de urgência ou em unidades fechadas como CTIs [Centro de Terapia Intensiva]) cumprem 12 ou 24 horas seguidas de trabalho – o que, somado ao estresse inerente à profissão e às péssimas condições de trabalho, leva a uma sobrecarga física e emocional intensa, favorecendo as falhas e colocando em risco a população. De forma geral, os médicos têm muitos vínculos empregatícios, trabalhos noturnos e diurnos no sistema público e privado. Costumamos dizer que não há desemprego na medicina, mas certamente há grande número de subempregos.

"Os médicos que trabalham em esquema de plantão cumprem 12 ou 24 horas seguidas de trabalho – o que, somado ao estresse inerente à profissão e às péssimas condições de trabalho, leva a uma sobrecarga física e emocional intensa"

Tenho dois vínculos de contratação temporária, um por situação de calamidade pública com o Ministério da Saúde e um por CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) com o município. O vínculo é frágil e nos impede muitas vezes de ter férias. São feitos novos contratos a cada seis meses. Assim o trabalhador não tem direito a se afastar do trabalho em licença de férias.

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A nomeação de Ricardo Barros para ministro da saúde, um engenheiro que não acredita na viabilidade do SUS e não tem nenhuma experiência na área da saúde, vem sendo catastrófica. Na minha opinião, é um grande genocídio da população pobre, que não tem acesso a outro sistema de saúde. Após aquela declaração [Ricardo Barros falou: "Vamos parar de fingir que pagamos o médico e o médico parar de fingir que trabalha"], todos os trabalhadores do SUS compartilhavam de um sentimento de revolta, de desânimo. Li relatos de vários médicos expondo suas dificuldades.

O ministro iniciou um processo de demissão de funcionários com previsão de redução de até 40% da força de trabalho até o fim do ano, fechamento de serviços especializados de alta complexidade e grandes emergências. Ao mesmo tempo, ele defende a criação de planos de saúde "populares" para cobrir o vácuo deixado pelo SUS. É uma situação no mínimo questionável do ponto de vista do conflito de interesses.

"Ele [o ministro da saúde, Ricardo Barros] defende a criação de planos de saúde 'populares' para cobrir o vácuo deixado pelo SUS. É uma situação no mínimo questionável do ponto de vista do conflito de interesses."

Tive muitos colegas de turma que transbordavam ideologia na época de faculdade e foram decepcionados a tal nível que partiram para a medicina privada. Na faculdade, aliás, já sabíamos diferenciar os médicos que tinham perfil para trabalhar no SUS, que tinham disposição para fazer a saúde pública melhorar a cada dia. Todos tínhamos admiração por aquele ambiente de universidade pública, pelo alto nível de complexidade das doenças que chegavam ali. No SUS, poderíamos nos aprimorar nos casos mais difíceis, nas doenças raras e graves. Desafiadoras. Era raro ver médicos que trabalhavam exclusivamente em clínicas privadas. O reconhecimento profissional vinha do vínculo público de trabalho. Dava "status" trabalhar em hospital público.

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Ilustração: Verena Antunes/ VICE

Hoje, o cenário vem mudando. Com a precarização das relações de trabalho, tem sido cada vez menos atraente para o médico atuar no sistema público. Má remuneração, vínculo frágil, condições desumanas de trabalho.

O investimento governamental que temos em saúde no Brasil é muito menor do que o feito em outros países com sistema público de saúde. O pouco dinheiro que chega ainda é desperdiçado com esquemas de corrupção, superfaturamento e má gestão. Toneladas e toneladas de medicamentos e próteses perdem validade e são desprezados sem terem beneficiado nenhum paciente.

"Toneladas e toneladas de medicamentos e próteses perdem validade e são desprezados sem terem beneficiado nenhum paciente."

A desorganização e a burocracia são grandes e letais. A produção nacional de medicamentos pela Biomanguinhos, farmácia da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que produz medicamentos de alta complexidade a baixo custo, é desfavorecida em detrimento da compra de medicamentos importados a um custo até 3000% mais caro. Isso ocorreu no caso da ribavirina, medicamento utilizado no tratamento das hepatites e comprado em regime emergencial de um laboratório privado, sendo que a incorporação da tecnologia já havia sido feita pelo SUS, capaz de produzir esta medicação por R$ 0,17.

Pouco se fala também nas consequências a longo prazo do sucateamento das universidades públicas. Quem estudou em um Hospital Universitário sabe exatamente o diferencial que esta estrutura faz na graduação em medicina. O que mais tem me preocupado com a atual crise da saúde é qual será o futuro da medicina exercida no Brasil.

"Os atuais alunos das mais respeitadas universidades estão recebendo diplomas tendo visto pouquíssimos doentes, tendo feito poucas anamneses, tendo palpado poucas barrigas."

Os atuais alunos das mais respeitadas universidades estão recebendo diplomas tendo visto pouquíssimos doentes, tendo feito poucas anamneses, tendo palpado poucas barrigas. A crise fechou leitos, reduziu o número de servidores. Medicina se aprende vendo doenças, examinando doentes. Nossos médicos estão saindo mais fracos das universidades. Estamos formando uma geração deficiente no exercício da medicina e isso vai se refletir por muitos anos no tratamento que receberemos quando estivermos doentes. Eu, você, nossos filhos. Todos os médicos, sejam os que trabalham no sistema público ou privado, se formam no SUS. Com a crise, a qualidade desta formação está sendo esquecida e afetará direta ou indiretamente a todos os brasileiros nas próximas décadas.

*O nome da entrevistada foi alterado para proteger sua identidade

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